Caminho da Serra do Mar, o sonho de uma trilha de 2 mil km

((o))eco - http://www.oeco.org.br/ - 02/09/2014
Mesmo concentrando cerca de 70% da população brasileira e seus maiores pólos industriais, a Serra do Mar e suas escarpas abrigam os principais remanescentes da Mata Atlântica. Os diversos reconhecimentos nacionais e internacionais, como o Corredor Ecológico da Serra do Mar (Ministério do Meio Ambiente) e a Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (UNESCO), simbolizam essa importância, mas refletem pouco em ações concretas de conservação do território e no engajamento da sociedade na sua proteção. Por isso, a criação de uma trilha de longo curso cruzando a Serra do Mar poderia multiplicar o impulso da conservação na região.

Apesar de abrigar áreas protegidas emblemáticas por suas paisagens excepcionais e importância para a conservação, na maioria dos casos essas áreas estão isoladas ou reunidas em mosaicos com tamanho insuficiente para conservar populações viáveis de muitas espécies em seu território. Manter ou recuperar a conexão entre essas áreas é um dos principais desafios para a conservação da Mata Atlântica brasileira.

Entre as diversas iniciativas internacionais que buscam viabilizar a conexão entre áreas protegidas, uma se destaca pelo envolvimento da sociedade e resultados concretos de proteção e recuperação de corredores: são as trilhas de longo curso. Às vezes com milhares de quilômetros, essas trilhas permitem que uma pessoa percorra a pé grandes trechos em ambiente natural, conectando diversas áreas protegidas e conquistando milhares de parceiros para os esforços de conservação.

Os efeitos positivos da Trilha Apalache

São numerosos exemplos no mundo inteiro, incluindo experiências na Europa, Austrália, América do Sul e África, mas a primeira e mais famosa iniciativa deste tipo se deu na costa leste dos EUA, onde em 1921 Benton Mckaye propôs o estabelecimento da Appalachian Trail (Trilha Apalache), cruzando toda a cadeia de montanhas Apalaches, com extensão de 3.500 quilômetros entre os estados da Georgia e do Maine. A Appalachian e outras diversas trilhas longas que a seguiram foram institucionalizadas dentro do U.S. National Park Service em 1968 pela publicação do National Trails System Act, decreto que reconhece essas trilhas como uma categoria de área protegida, no contexto do SNUC dos Estados Unidos.

A Appalachian Trail cruza 2 parques nacionais e 23 estaduais, além de diversas unidades de outras categorias, totalizando 75 áreas protegidas federais e estaduais. Muitas delas foram criadas para proteger a trilha e terras foram adquiridas pelo Poder Público ou doadas por particulares para a recuperação de corredores em áreas antes ocupadas por pastagens ou plantações. Tudo isso para permitir que os caminhantes passassem apenas por áreas naturais.

Além da recuperação de corredores, a Appalachian tem um efeito fantástico na sensibilização e mobilização da sociedade em prol da conservação. Caminhar na trilha cria um sentimento de pertencimento que faz com que pessoas se mobilizem para proteger as Montanhas Apalaches e a trilha, que elas tratam como suas, como um direito público, quando grandes empreendimentos a ameaçam. Mesmo que só tenham percorrido um pequeno trecho a centenas de quilômetros do local em questão, milhares de caminhantes se mobilizam para pressionar os responsáveis e garantir a conservação da trilha.

Que tal uma super trilha na Serra do Mar?

O exemplo da Appalachian Trail é a inspiração para o Caminho da Serra do Mar. Por que não unir as muitas trilhas existentes e permitir que se percorra toda a extensão dessa cadeia de montanhas a pé, unindo parques e paisagens maravilhosas da costa brasileira?

A trilha passaria por pelo menos 6 parques nacionais, 18 parques estaduais e cerca de 30 outras unidades de conservação federais, estaduais e municipais. Seriam pouco mais de dois mil quilômetros, dos quais grande parte já existe. A malha de trilhas atual pode, em um primeiro momento, ser conectada por pequenas estradas rurais, até que, a exemplo da Appalachian Trail, se viabilize a recuperação de corredores ou a implantação de trilhas de conexão.

Nossa viagem começaria no Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, em Santa Catarina, partindo em direção ao Parque Nacional da Serra do Itajaí, passando por Florestas Nacionais e pequenas áreas protegidas, inclusive particulares. Ao entrar no Paraná, o caminhante cruzaria o Parque Nacional Saint-Hilaire Lange, e chegaria ao Parque Estadual do Marumbi antes de descer a Serra da Graciosa e chegar a Guaraqueçaba e à Baía de Paranaguá. Após passar pela Ilha do Mel e o Superagüi, nosso viajante chegaria ao Estado de São Paulo pela Ilha do Cardoso e o Mosaico da Jureia.

A partir daí, o trilheiro poderia subir a serra para conhecer as cavernas do Vale do Ribeira, Intervales e Carlos Botelho, cruzando a já existente Trilha do Continuum. Voltando para o litoral, seria possível serpentear pelas diversas trilhas que conectam o planalto paulista ao litoral nos diferentes núcleos do Parque Estadual da Serra do Mar. Após um passeio pela Ilhabela, nosso viajante ingressaria no Parque Nacional da Serra da Bocaina, pisando nas areias das belas praias da Ponta da Juatinga, antes de subir aos campos de altitude e descer novamente, agora pelo caminho em pé de moleque que desemboca na vila histórica de Mambucaba, pela famosa Trilha do Ouro.

Após a tradicional Volta da Ilha Grande, nosso incansável caminhante chegaria de barco à Restinga da Marambaia (por que não sonhar com a abertura desta área militar a partir da pressão de tantos apaixonados pela trilha?). Da Marambaia ele ingressaria na Trilha Transcarioca, que quase 15 anos depois da proposta do ambientalista Pedro da Cunha e Menezes finalmente está saindo do papel e já tem grande parte dos seus 180 quilômetros implantados.

Após passar por alguns dos mais famosos ícones turísticos do país, como o Corcovado e o Pão de Açúcar, o caminhante faria como os viajantes do século XIX. De barco singraria a Baía de Guanabara, caminharia ao lado da primeira ferrovia do Brasil, a Estrada de Ferro Mauá antes de subir pelo leito intocado da antiga Estrada Real (Caminho Novo da Estrada do Ouro), já em área do Parque Nacional da Serra dos Órgãos. Este trecho, conectado à fantástica Travessia Petrópolis-Teresópolis, soma seis dias de caminhada e já vem sendo chamado de Caminhos da Serra do Mar. Essa trilha já está sendo ampliada para o Parque Estadual dos Três Picos.

Dali, o caminhante seguiria até o Parque Estadual do Desengano onde se encerraria nossa jornada de cerca de dois mil quilômetros pelas mais belas paisagens da costa sul e sudeste do país.

As Unidades de Conservação de proteção integral conectadas pela trilha totalizam mais de um milhão e cem mil hectares. Se considerarmos as unidades de uso sustentável e os corredores esse número passa de dois milhões de hectares. Nessa área vivem mais de 150 espécies ameaçadas de extinção, entre os quais a onça-pintada (Panthera onca) e o maior primata das Américas, o muriqui (Brachyteles arachnoides), que podem ser favorecidas pela maior conexão entre os remanescentes florestais. A trilha também geraria renda local, incentivando o turismo ecológico e de base comunitária e valorizando as culturas locais.

Impulso para conservar

O Caminho da Serra do Mar, a "Appalachian Trail brasileira", seria um grande eixo para a conservação, ajudando a gerar na sociedade um sentimento de pertencimento em relação à Mata Atlântica, unindo as três esferas de Governos e a sociedade civil em ações concretas de proteção e recuperação de áreas e integrando os esforços de conservação ao anseio por contato com a natureza e a sensação de vida ao ar livre, cada vez mais valorizados pela população crescentemente urbana do país. Por enquanto é apenas uma ideia ou um sonho, mas já está virando projeto pelas mãos de gestores, voluntários e instituições, como o WWF (World Wildlife Fund), e pode virar realidade. A Appalachian Trail existe há quase 90 anos e ainda está em construção. Precisamos começar o quanto antes.


*Ernesto Viveiros de Castro é Biólogo, mestre em Ecologia, analista ambiental do ICMBIO, hoje, na posição dechefe do Parque Nacional da Tijuca. Sua experiência em percorrer trilhas de longo curso inclui a Appalachian Trail, Pacific Crest, Hoerikwaggo (África do Sul), e travessias na Serra dos Órgãos, Chapada Diamantina, Chapada dos Veadeiros e Itatiaia. É membro da Câmara Técnica do Mosaico Carioca, responsável pela implantação da Trilha Transcarioca.



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